O documentário Seaspiracy, na Netflix desde março deste ano, foi uma comoção para uma parcela da população, que finalmente abre os olhos em relação à situação dos mares no mundo.
Para alguns, estas informações talvez tenham vindo com um susto, mas para a Sea Shepherd, trabalhando na linha de frente da proteção à vida marinha, estes fatos infelizmente fazem parte do nosso cotidiano há décadas; somos testemunhas da guerra que nós como humanidade estamos tramando com o oceano.
Escravidão em alto mar, destruição de leitos com redes de arrasto, pesca predatória e morte de 40% dos animais marinhos retirados do mar pela pesca acessória (mais conhecida como pesca “acidental”), o mercado de animais em cativeiro e a aquicultura como uma falsa solução sustentável para o oceano. Certamente, Seaspiracy veio para compilar, em um formato bem compacto e impactante, algumas das principais mazelas e impactos negativos que a raça humana vem depositando nos mares e que a Sea Shepherd vem testemunhando em mais de quatro décadas de atuação.
Em alguns pontos, o documentário traz dados que possuem divergências com outros estudos (mas que não negam suas conclusões em essência) e, em outros, pode ter sido severo para com algumas ONGs, como exemplo, a Oceana, que realiza estudos de referência sobre pesca acessória, luta pela abolição de grandes subsídios à indústria pesqueira, portanto inegavelmente sendo uma das organizações na linha de frente destes problemas ambientais.
Mas certamente ele vence ao expor, com exemplos claros, e narrativa sucinta ao lidar com tantos pontos, a grande devastação que a nossa espécie realiza por todo o oceano. Sem que a grande maioria da população saiba, estamos matando o oceano que é fundamental para a nossa sobrevivência.
O brasileiro que assiste a este documentário deve pensar: mas e eu com isso? Estes problemas certamente são destinados a países como China, Taiwan e Espanha, que são os gigantes da pesca industrial no mundo? Talvez algumas pessoas devam pensar que o Brasil ainda é restrito neste aspecto.
Isto não poderia estar mais longe da verdade.
Já há mais de 20 anos atuando no Brasil, a Sea Shepherd vem testemunhando exemplos e mais exemplos de práticas insustentáveis de pesca, e também de manejo da imensa área costeira brasileira.
Testemunhamos a matança de golfinhos do Norte do país para o uso de sua carne na pesca de tubarões para o mercado de barbatanas da Ásia. Identificamos relatos de botos cor-de-rosa e tucuxis para isca do peixe piracatinga, que mesmo com sua pesca suspensa por mais de 6 anos, segue sendo pescado ilegalmente e destinado a mercados como o da Colômbia.
É constante o recebimento de denúncias e imagens de redes de pesca fantasma pela costa brasileira, que seguirão matando animais marinhos enquanto estiverem no fundo do mar. Sempre que possível, atuamos em retirá-las por meio de nossa campanha Ondas Limpas, que realiza limpezas submarinas e nas praias com voluntários por todo o litoral brasileiro.
Aprendemos sobre o efeito das redes de pesca fantasma em nosso litoral. É estimado pela World Animal Protection que este fenômeno é encontrado em 70% da costa brasileira, inclusive áreas protegidas, e que cerca de 580 quilos de redes são despejados por dia em nossa costa, podendo impactar quase 70 mil animais marinhos por dia.
As toninhas, o mamífero marinho brasileiro com mais risco de extinção, tem a pesca acessória em redes como sua maior rival: elas não enxergam a rede e morre asfixiada nas redes de pesca (em sua grande parte artesanal).
Nossa pesca artesanal, representativa de 94% dos pescadores, possui uma extensa área ‘cinza’ que comumente a torna difícil distinguir da industrial. Sabemos de pescadores artesanais que utilizam de tecnologias que desregulam o habitat quando usado por toda uma comunidade, como pesca com covas, com bombas, pesca comercial submarina, a prática de pesca sem manejo e ordenamento é infelizmente comum, e técnicas com uso de redes cada vez maiores e mais eficazes, e ‘frotas’ nada artesanais se torna a solução em uma costa com cada vez menos peixes.
Ouvimos relatos de pescadores por toda a nossa costa sobre uma diminuição em rápida velocidade na variedade, quantidade e tamanho de peixes sendo pescados. Vemos pescadores artesanais desistindo de seus trabalhos para fazer parte de navios maiores, pois a competição entre eles e a pesca industrial está cada vez mais injusta.
Temos uma pescaria industrial formada de maneira nada ordenada, e hoje é comum relatos de pescadores industriais que não cumprem com as leis de pesca; uso de barcos de arrasto motorizados que desrespeitam as leis de distanciamento à costa, pesca de animais em fase de defeso, uso de técnicas e redes e pesca sem seguir as exigências solicitadas.
Temos conhecimento sobre autorizações para a pesca de atum e peixe espadarte por dezenas de navios internacionais, de frotas internacionais ou arrendados, verdadeiras fábricas de morte, vindos de Taiwan, Japão, Espanha em nossas águas, estes subsidiados pelo governo.
Vemos frotas de pesca oceânica competindo com estes navios por toda a costa. Ao adotar essa prática, vimos o aumento da pesca de atum no RS, SC, CE e RN a velocidades estrondosas. Mesmo com o número de peixes diminuindo, as técnicas estão cada vez mais eficazes e dizimam a população destas espécies a um ritmo assustador.
Testemunhamos barcos de rede de arrasto de camarão destruindo o leito do mar próximo ao litoral, relutantes em usar em suas redes os dispositivos de escape de tartarugas e outras espécies (mesmo que isso seja solicitado por lei para barcos maiores de 11m), ocasionando a maior proporção de morte de espécies pela pesca acessória de todos os tipos de animais marinhos: em média, para a pesca de 1kg de camarão, são mortos em média 10kg de outras espécies.
Vemos por toda a parte movimentos sistêmicos de destruição de ambientes costeiros, como os manguezais, que são o verdadeiro berçário marinho e fundamental para o equilíbrio do oceano e, que de maneira acelerada, são destinados para a prática insustentável de carcinicultura. As restingas, também importantes pois evitam a erosão da costa e proteção da vida marinha, têm sido rapidamente destinadas a especuladores imobiliários por todo o nosso litoral.
Denunciamos práticas de turismo de observação de baleias diversas vezes utilizando barcos sem o devido controle, com motor ligado bem próximos às baleias, as encurralando, assustando e, porventura, até as atropelando com seus motores.
Observamos e estudamos a rápida velocidade do branqueamento dos corais do Nordeste do país, vemos a diminuição da biodiversidade dos corais por toda a costa, o crescimento da presença de espécies invasivas como o coral-sol por toda a costa, chegando até em áreas mais isoladas e protegidas, como o arquipélago de Alcatrazes, a 35 km da costa no litoral de SP.
Testemunhamos convites de leilão para a exploração de minério e petróleo nas raríssimas áreas que realmente são protegidas do Brasil, como: Abrolhos, Atol das Rocas e Fernando de Noronha.
Nos chocamos que mesmo no rio nossos peixes são contaminados; que 98% dos peixes da Amazônia estão com plástico em seu organismo, peixes que consumimos com alta concentração de metais pesados, como mercúrio e chumbo, além de dioxinas advindos de nossas atividades poluentes de mineração e agricultura, tanto nos rios quanto nos mares. O consumo destes peixes, e da água em si, nos causa problemas de saúde severos afetando a saúde das comunidades tradicionais, e a de toda uma região.
Vemos o brasileiro aumentar de maneira rápida seu consumo per capita de peixes: um crescimento de 6 kg para 10 kg de peixes por ano em apenas 10 anos (2009 x 1999 segundo o IBGE), e crescendo, criando relativamente novos e nada ‘tradicionais’ hábitos de consumo de peixes, como o atum e o salmão nas grandes cidades brasileiras.
Testemunhamos o crescimento do consumo de peixes de fora: 60% do peixe que consumimos vêm do exterior. O salmão no Brasil, por exemplo, lidera: um peixe que representa por volta de 30% das importações para o país, em grande parte vinda da aquicultura do Chile. Esta é uma prática totalmente insustentável, que cria peixes carregados de antibióticos, que ficam em tanques superpopulosos, comumente morrem asfixiados, que consomem de 3 a 9 vezes ou mais o seu peso de peixes selvagens em sua alimentação contaminam todo o ecossistema marinho onde as fazendas de criação se localizam, disseminando doenças, toxinas e espalhando este animal não-endêmico na região para afetar o equilíbrio do local.
Sabemos que pessoas comprando peixe na feira, no supermercado, restaurante e peixaria o fazem sem saber sua procedência. Há muito pouca ou quase nenhuma informação de local de origem e modo de pesca. Muitos até são enganados pela venda de peixes com nomes errados. Em estudo realizado pelo MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), há estados que vendem até 40% dos peixes com nome errado para seus compradores. Além disso, tubarões em risco de extinção e peixes ilegais como a piracatinga sendo vendidos com nomes ‘eufemizados’ para o consumidor final, como cação e douradinha, respectivamente.
Seguindo um estudo realizado pela UFPR em Curitiba, 70% das pessoas comem cação sem saber que é tubarão. Os elasmobrânquios (tubarões e raias) representam 40% da pesca acessória na prática de pesca de atum em redes de espinhel. Também somos os maiores importadores de tubarão do mundo, com o cação sendo um dos peixes mais consumidos do Brasil por conta de seu valor baixo, o que nada mais é que uma maneira de os grandes navios de pesca de barbatana de tubarão continuarem com seus atos criminosos: eles seguem a regra de “total aproveitamento do animal”, assim continuando a enviar a barbatana do tubarão para lugares como Hong Kong, o maior importador de barbatanas do mundo, enquanto vendem a carne a preços baixos para o Brasil.
Estamos diante de um contexto onde as autoridades não priorizam o tema. Temos um conjunto de leis de proteção ao mar que são complexas, não integradas e desconhecidas pelo cidadão comum. Temos um vão de 10 anos em dados e conhecimento sobre a pesca em nossa costa, o status pesqueiro de 96% das espécies brasileiras está desconhecido. Dentre eles, mais da metade (57%) apresenta biomassa abaixo de níveis biologicamente seguros. E 43% sofrem com a sobrepesca, ou seja, estão sujeitos a níveis de mortalidade por pesca acima da capacidade de reposição dos estoques. Possuímos uma lei que pode ajudar na integração das iniciativas de monitoramento e proteção de nossa “Amazônia Azul”, a lei 6969/13 (Lei do Mar), que segue em processo de discussão desde 2013 e ainda sem perspectivas de aprovação. E bem recentemente assistimos à a CPI do maior desastre ecológico de nossa costa marinha ser engavetada sem nenhum tipo de resolução.
Todos estes exemplos são rodeados por um mesmo princípio: a visão antropocêntrica que temos sobre o oceano, e o planeta. A visão que o oceano está aí para nos servir. O tratamento do oceano e a vida marinha como fonte infinita de recursos. A percepção que os animais marinhos são feitos para ser nossa fonte de alimento.
A Sea Shepherd acredita que, com a situação do oceano hoje, não existe pesca sustentável. O oceano é um só e as práticas insustentáveis que acontecem no mundo inteiro afetam o equilíbrio como um todo, e também afetam o nosso bem-estar e o nosso futuro. Acompanhamos a diminuição dos fitoplânctons no oceano, grandes produtores do nosso oxigênio, que já diminuíram em 40%. Vemos o poder do oceano de sequestrar carbono em xeque com a alta velocidade em que surgem as zonas mortas.
Para muitos, o oceano poderia estar “escuro” até terem assistido a este documentário. Mas para nós da Sea Shepherd, que estamos presentes em todos os mares deste único oceano, por anos assistimos desesperadamente as consequências da visão antropocêntrica que temos do mundo, já é de longa data que sabemos: estamos em guerra com o mar.
O oceano simplesmente não foi feito para alimentar 10 bilhões de pessoas e muito menos para alimentar os 60 bilhões de animais para abate e animais domésticos e os trilhões de peixes da aquicultura mundial.
Assim como nossa capacidade de destruição é imensa, também pode ser nossa capacidade de regeneração. Temos que decidir agora se nossas escolhas, sejam elas individuais ou como humanidade, alimentarão este caminho sem volta ou se terão como foco a restauração desta que é uma de nossas maiores esperanças para a sobrevivência humana na Terra.
Para um oceano saudável, a solução que vemos é deixar o oceano em paz.
Na Sea Shepherd, trabalhamos incessantemente em projetos de pesquisa para entendimento do impacto humano nos rios e mares, projetos de ação direta para a mitigação do efeito humano no oceano e projetos de conscientização para a educar a população sobre a importância do ecossistema aquático, nossa interdependência com este gigante e o impacto negativo que causamos nestes biomas até os dias de hoje.
No Brasil e no mundo, até vermos um oceano recuperado, em equilíbrio, protegido, respeitado e venerado pela humanidade, não iremos desistir. Nossa batalha é por toda a biodiversidade marinha, que chamamos de nossos clientes, mas também o que nos motiva diariamente é a sobrevivência do ser humano como espécie neste planeta.